Incerteza e falta de alternativas: pacientes da Ascamed falam do impacto da destruição da plantação feita pela PF

Incerteza e falta de alternativas: pacientes da Ascamed falam do impacto da destruição da plantação feita pela PF

Foto: Ascamed (Divulgação)

Mais de 900 pessoas de outros 14 estados do país, além do RS, utilizam os óleos produzidos pela associação. Com a destruição da plantação, os tratamentos podem ser interrompidos.

A família de uma menina, de apenas 6 anos, vive um cenário de incerteza e desespero desde março deste ano. Diagnosticada com Transtorno do Espectro Autista (TEA), ela faz tratamento com óleo de cannabis desde setembro de 2024. Uma possível interrupção do processo é descrita como "desesperadora" pelo pai da menina, um homem de 36 anos, que viu episódios como crises explosivas e dificuldade de interação serem reduzidos consideravelmente com o uso de medicamento. 

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O sentimento é compartilhado por mais de 900 pacientes de todo o país, que eram atendidos pela Associação Cannábica Ascamed. Em 20 de março, as mudas da plantação de cannabis e os insumos da instituição foram apreendidas e destruídas pela Polícia Federal (PF) durante uma operação. Veja como o óleo de cannabis é produzido e quais são os benefícios, além de atualizações sobre a investigação e um projeto de lei protocolado na Câmara de Vereadores de Santa Maria. 

Como o óleo é feito?

Registros da plantação da Ascamed.Foto: Ascamed (Arquivo pessoal)

O óleo de cannabis é um produto obtido por meio da extração dos canabinoides, substâncias presentes na Cannabis sativa, que agem em vários lugares do corpo. O CBD (canabidiol) é um dos compostos da cannabis e está associado a impactos terapêuticos, como ação analgésica, ansiolítica, anti-inflamatória, sedativa e anticonvulsivante, sem causar efeitos psicoativos. Por isso, é amplamente utilizado na medicina e na indústria farmacêutica.

Já o THC (tetra-hidrocanabinol) é o principal composto psicoativo da planta, responsável pela sensação de euforia ou “barato” quando usado para fins recreativos. Embora a cannabis e a maconha sejam frequentemente relacionadas, a forma medicinal da planta é cultivada e produzida especificamente para fins terapêuticos e não têm nenhuma relação com uso recreativo.

As propriedades medicinais do oléo de cannabis podem atuar como analgésico, estimulante de apetite, antiemético (contra náuseas), anticonvulsivante, relaxante muscular, auxílio na indução do sono e antidepressivo, quando utilizado dentro da dosagem e da formulação correta.

Além do tratamento de transtorno do espectro autista (TEA), o medicamento é indicado para pacientes com diferentes patologias, como dermatite, ansiedade, depressão, alzheimer, parkinson, fibromialgia, epilepsia, dores crônicas, doenças gastrointestinais, entre outras.

Atualmente, a Ascamed produz óleos que podem ser divididos em três linhas: alto CBD, Alto THC e óleos equilibrados, que contêm diferentes proporções, composições e concentrações das substâncias. A indicação varia conforme o tratamento e condições específicas de saúde de cada pessoa. Os valores partem de R$ 90 e podem chegar a R$ 1,2 mil.

Segundo a diretora Social da Ascamed, Júlia Silverter, a associação utiliza o método RSO (Rick Simpson Oil), um processo de extração com solvente, que preserva a concentração total dos canabinoides. Após a colheita, as flores são secas, curadas e trituradas. Em seguida, passam por extração com etanol de grau farmacêutico, quando os compostos ativos são dissolvidos e, posteriormente, o solvente é evaporado, resultando em um extrato altamente concentrado. Esse extrato é diluído em MCT (Triglicerídeos de Cadeia Média), um óleo carreador que melhora a absorção dos canabinoides pelo organismo. 

Júlia conta que antes da distribuição aos pacientes, 

Quais são os benefícios para quem faz o uso?

O tratamento com óleo foi indicado aos pais de menina de 6 anos, assim que o diagnóstico de TEA foi confirmado. Desde 11 de setembro de 2024, ela toma oito gotas do produto diariamente: quatro pela manhã e quatro à noite. Para o pai da pequena, apesar do pouco tempo de tratamento, os benefícios são visíveis na vida da filha:

Ela tinha muitas crises explosivas, e o cannabidiol ajudou muito nesse controle. Ela também não conseguia formar frases completas e, após o uso, nós percebemos que ela teve um desenvolvimento muito grande na fala, tanto que deu alta da fono. A concentração em aula e a interação com os colegas também melhoraram muito. Ela não conseguia, por exemplo, participar das apresentações da escola, e na última apresentação na escola foi muito emocionante, porque ela participou do início ao fim, dançando, cantando, aproveitando realmente o momento. Para nós, foi muito gratificante. 

O pai conta que, fora a Ascamed, as outras opções encontradas pela família no mercado eram importadas — geralmente disponíveis com um valor até três vezes mais alto — ou farmacêuticas e que nem sempre apresentavam o resultado esperado. Com relação à destruição da plantação da associação e a suspensão da produção do óleo, eles teriam sido 'pegos de surpresa' e que o pouco óleo que resta no frasco deve garantir o tratamento dela por pelo menos um mês: 

Para ser bem sincero, pensar em não tratar ela com cannabidiol é um pouco desesperador, porque vimos toda a evolução que ela teve. Então, é desesperador só de imaginar em não teremos mais isso.

O tratamento não é exclusivo de seres humanos. O chiuaua Socks, de 6 anos, usa o óleo para tratar uma condição na pele chamada de dermatite atópica. Por ser muito ansioso, ele costumava lamber compulsivamente patas e partes do corpo,causando irritação localizada

Segundo a professora universitária e tutora de Socks, Carmen Vieira Mathias, 49, o tratamento era feito com antialérgicos a base de corticoides, o que prejudicavam a saúde do animal, além de ter um tempo máximo de uso. Com o óleo, o tratamento pode ser feito de forma contínua, e melhorou consideravelmente a vida do pet:

Antes, ele tava se tratando com outros medicamentos que faziam mal para os rins. Agora, ele está bem mais tranquilo, super acostumado.  Se ele ficar sem o óleo, teremos que recorrer novamente a tratamentos mais invasivos, que podem diminuir a qualidade de vida do nosso filhote.

Carmen e o pequeno Socks, de seis anos.Foto: Arquivo pessoal

A indicação do óleo para o cachorro surgiu a partir de uma pesquisa da médica veterinária Carollina Mariga, 30 anos, que é realizada dentro do Hospital Veterinário Universitário (HVU) da UFSM. Durante a graduação, ela perdeu o gato Gregório em decorrência de uma doença que poderia ser tratada com substância da cannabis — algo que não era viável na época. Em 2021, a professora transformou a dor em combustível para a pesquisa no mestrado com  o objetivo de auxiliar quem, assim como a dela, estava na busca de alternativas de tratamento para o bem-estar dos pets. 

Hoje doutoranda na instituição, a pesquisadora explica que o óleo é usado para recuperar o equilíbrio do organismo dos pets, amenizando os sinais clínicos ou controlando doenças. Isso engloba sinais clínicos relacionados ao comportamento como ansiedade, estresse e medo. Pensando na área dermatológica, diminui a coceira e tempo de cicatrização de feridas em geral. 

Em casos de oncologia, os animais em tratamento ficam mais estáveis, mantendo a fome e diminuindo os efeitos adversos da quimioterapia. Especificamente para felinos, o óleo auxilia no tratamento da FIV e FeLV, vírus bastante comuns na população felina que causa imunossupressão e o desenvolvimento de diversas doenças.

Os resultados são maravilhosos, muitas vezes me surpreendo, junto com os tutores com as respostas positivas que obtivemos. Geralmente, eles nos procuram, porque "não sabem mais o que fazer" e a maioria sai satisfeito.O que aconteceu (destruição da plantação da Ascamed) pode até dificultar o nosso trabalho, mas vamos continuar lutando para levar saúde aos nossos pacientes — reforça Carollina.

Na Câmara

Atualmente, além de uma moção de congratulação (homenagem a pessoas ou entidades que se destacam ou prestam serviços relevantes), a Ascamed conta com um projeto de lei protocolado em Santa Maria, de autoria do vereador Sérgio Cechin (Progressistas). O documento reconhece a Ascamed como entidade de utilidade pública municipal, garantindo reconhecimento oficial à associação. 

Cechin também havia apresentado um segundo projeto para assegurar o direito de acesso ao óleo de cannabis medicinal em Santa Maria, garantindo que a cidade acompanhasse a regulamentação da Anvisa e a prescrição médica já amplamente adotada. No entanto, essa proposta foi retirada para complementação, após a Comissão de Direitos Humanos da Câmara aprovar a realização de três reuniões públicas para aprofundar o debate sobre a regulamentação e o acesso ao tratamento.

Para o vereador, a causa tem um significado especial:

– Além de ser uma pauta de saúde pública, é também uma luta pessoal. Um familiar, que faleceu há pouco mais de um ano vítima de câncer. Durante o tratamento, o óleo de cannabis medicinal foi essencial para aliviar dores, reduzir efeitos colaterais e garantir mais qualidade de vida a ela. Lembro bem das dificuldades que enfrentamos para conseguir esse medicamento. Na época, o acesso era extremamente burocrático e, muitas vezes, só conseguíamos importar de fora do país, pagando valores exorbitantes. Sei o quanto isso é angustiante para as famílias, que já lidam com a dor da doença e ainda precisam superar tantas barreiras para conseguir um tratamento que pode ajudar – explica.

Operação da PF

Durante a operação, que recebeu o nome de Desvio Verde, foram incinerados 422 pés e 480 mudas de cannabis em uma propriedade rural localizada em Caçapava do Sul. Também foram cumpridos três mandados de busca e apreensão, sendo um em Caçapava e dois em Santa Maria. 

Segundo Júlia Silverter, diretora social da Ascamed, como o clima do Rio Grande do Sul permite que a cannabis seja cultivada apenas uma vez ao ano, a reconstituição da produção levará pelo menos 16 meses para ser recuperada:

 — A destruição afetou não só a produção, mas tudo. As pesquisas em andamento, o acolhimento, o dia  a dia dos colaboradores... É a destruição de um trabalho árduo de três anos de muito estudo, comprometimento e empenho da diretoria e toda a equipe que entrou nesse tempo. (...) Esse impacto reforça a urgência da regulamentação do cultivo associativo para garantir a continuidade do tratamento — reforça.

Até que a Ascamed possa obter autorização para retomar a produção, a associação obteve ajuda de outros produtores do óleo medicinal no país, que estão fornecendo o medicamento aos pacientes. 

Registros da plantação a Ascamed.Foto: Ascamed


Previsão do próximo plantio da Ascamed

  • Setembro – outubro de 2025: germinação das novas plantas;
  • Março – abril de 2026: colheita e secagem;
  • Abril – maio de 2026: extração e produção dos óleos;
  • Junho – julho/2026: início da distribuição aos pacientes da Safra 2025/2026.


A investigação

A associação foi alvo de operação da PF por suspeita de cultivo irregular de maconha. Mudas foram incineradas em Caçapava do Sul.Foto: Polícia Federal (Divulgação)

A ação investiga irregularidades no cultivo de cannabis e na produção de medicamentos derivados sem autorização sanitária. Segundo a PF, o responsável pela plantação obteve autorização judicial em dezembro de 2024 para o cultivo com a finalidade exclusiva de produzir extratos medicinais para consumo próprio, restrito à sua residência. No entanto, as investigações teriam apontado que o cultivo ocorria em escala superior à autorizada e em um local distinto do permitido.

Já a associação Ascamed reforça que está colaborando com a investigação da Polícia Federal, disponibilizando documentos sobre as atividades realizadas, que estariam de acordo com o que está sendo discutido em instâncias judiciais, como o caso que tramita na Justiça sobre a autorização para o cultivo e uso de cannabis para fins medicinais. 

Contudo, segundo o Ministério Público Federal (MPF), o processo está suspenso por desdobramentos de decisões de tribunais superiores e ainda por não ter uma determinação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) ou da União para regras de importação e cultivo de cannabis sativa para fins medicinais, farmacêuticos ou industriais. Em fevereiro, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) determinou que essa regulamentação seja feita até maio.

Antes da suspensão do processo, o MPF havia dado um parecer favorável ao plantio para uso medicinal, conforme citado anteriormente pela associação.

Em contato com a reportagem, a Ascamed reforça que agiu dentro da legalidade diante da tramitação do processo com o pedido de autorização, e que a espera pela regulamentação pode ser ainda mais prejudicial aos pacientes. Leia a nota completa:


"A Ascamed impetrou sua ação antes dos tribunais superiores decidirem pela suspensão. Desde então estamos lutando para que a justiça análise nosso pedido, mas há um entendimento de que não havia risco aos pacientes e diretores. No entanto, o entendimento da justiça não se reflete na compreensão repressiva da polícia. Ainda que a justiça acredite que não corremos riscos, a polícia atua, recolhe remédios, queima plantas, apreende telefones de diretores e, ainda assim, a justiça acredita que aguardar a Anvisa seja o mais correto. A única forma de garantir o tratamento aos pacientes é colocando os diretores e suas reputações em risco, ainda que a justiça acredite que não há riscos envolvidos enquanto se aguarda uma regulação da Anvisa. Resta ainda esclarecer que a própria Anvisa já afirmou que não conseguirá cumprir o prazo estabelecido pela justiça de seis meses. Enquanto isso, dor, sofrimento, prisões, apreensões acontecem, ainda que a justiça acredite que nada disso esteja acontecendo. O tempo passa, a dor aumenta, o risco é grande, mas a vontade de fazer a coisa certa é ainda maior. A Ascamed não vai parar!

A investigação segue a cargo da Polícia Federal.

*colaborou Pablo Iglesias

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